Era 16 de janeiro de 2017, uma segunda-feira, quando Eugene Cernan faleceu. Em 1972, ele foi o último homem, entre apenas doze, a pisar na Lua.

Foram feitos como esse, possibilitados por cientistas e astronautas do mundo todo, que fizeram inúmeras pessoas se apaixonarem pelo espaço ao longo dos anos – incluindo o grupo de brasileiros que planeja colocar o primeiro satélite lunar brasileiro em órbita em 2021.

Trata-se da Garatéa-L, primeiro projeto da missão Garatéa, uma empreitada da startup Airvantis. Fundada em 2013, a startup de satélites traz ao país o conceito de startup new space, como são conhecidas aquelas que focam na exploração espacial.

Com carona garantida numa missão internacional que levará seis outros projetos à Lua na nave-mãe Pathfinder, a Garatéa quer dar ao Brasil um legado duplo, tecnológico e educacional, e inspirar jovens a ver nas estrelas (e nos campos que tornam essa exploração possível) novas oportunidades de futuro.

A Garatéa

“Não temos uma cultura espacial e o caminho primordial é através da educação”, resume Lucas Fonseca, diretor da missão e cofundador da Airvantis, no escritório da Exploruum, uma startup parceira, em São Paulo. “Então vamos pegar uma temática fantástica e mostrar que qualquer um que estude tem condições de realizar algo desse nível.”

O tema não foi sempre o cerne de suas preocupações. Antes disso, sua maior ambição era trabalhar na NASA, a agência espacial americana.

Formado em Engenharia Mecatrônica pela USP de São Carlos, ele viu por anos seu currículo ser rejeitado pelos americanos.

Pouco disposto a abrir mão da carreira dos sonhos, deixou um emprego confortável na indústria farmacêutica e foi buscar seu mestrado na École Nationale Supérieure de l’Aéronautique et de l’Espace, tradicional instituição de engenharia aeroespacial francesa.

“Vi que só a a USP não estava abrindo as portas necessárias”, lembra ele, que completou a graduação em 2008 e se mudou para a França no ano seguinte.

A estadia na Europa acabou se alongando graças ao governo alemão, que se impressionou com sua tese e o alocou na equipe de cálculo do software de pouso da Missão Rosetta, coordenada pela European Space Agency (ESA), a agência espacial europeia.

“Fui muito feliz na minha escolha porque foi o maior feito dos últimos vinte anos”, orgulha-se Lucas, que trabalhou na ESA entre 2009 e 2013, ano em que voltou ao Brasil e abriu sua própria empresa de automação.

Não é para menos. Em 2014, após uma década de planejamento e outra de viagem, a ESA pousou a sonda Philae em um cometa. 

Quinze minutos depois do pouso, uma equipe da rede Globo bateu na porta. Único brasileiro a ter trabalhado na Rosetta, ele passou os cinco meses seguintes participando de debates e entrevistas sobre o assunto.

Foi ali que percebeu o déficit educacional do país quando se trata dos benefícios que a pesquisa espacial gera para a sociedade e começou a incorporar o problema em suas ideias.

Afinal, a decisão já estava tomada. Com NASA ou sem NASA, Lucas trabalharia com o espaço.

A missão

O primeiro passo foi encontrar apoio acadêmico. Em 2014, o engenheiro propôs à USP São Carlos que desenvolvessem um programa de satélites em conjunto.

Com os universitários do recém-criado grupo de estudos científicos Zenith, o novo professor-visitante começou a enviar sondas em balões de alta altitude,  que ascendem à estratosfera por algumas horas e permitem testes com microorganismos e moléculas expostos à radiação cósmica sem proteção.

O uso dos balões tem dado tão certo e a preços tão acessíveis (cada um custa cerca de R$ 5 mil) que a Garatéa e a Exploruum desenvolveram juntas um kit aeroespacial para crianças. O produto já foi adquirido por escolas públicas e particulares e pelo Google, avançando rumo ao legado educacional que a startup espera criar.

Hoje no terceiro ano de Engenharia de Materiais e Manufatura na USP São Carlos, Francesco Lena é coordenador do Zenith, que testa e valida componentes e tecnologias para a missão lunar, e compartilha esse objetivo.

Representamos o início do legado que a missão pretende deixar no país”, fala ele, destacando que palestras em escolas da região estão na agenda. “E o que vem por aí promete trazer grandes desafios: queremos fazer uma sonda com um sistema mais avançado de energia, telemetria e sistemas de válvulas e, futuramente, desenvolver um drone capaz de retornar lá de cima.”

O que de fato vai orbitar a Lua em 2021 é um conjunto de seis cubesats, um tipo de satélite capaz de conduzir experimentos tecnológicos sofisticados apesar do tamanho diminuto (são cubos de 10 centímetros).

Desenvolvidos em 1999 por pesquisadores da Universidade Stanford e da Universidade Estadual Politécnica da Califórnia, os cubesats se encaixam como peças de Lego e permitiram a democratização da exploração espacial graças ao seu custo relativamente baixo.

Ao contrário de grandes missões, que chegam facilmente às centenas de milhões de dólares, montar um cubesat básico exige cerca de US$ 50 mil. Lançá-lo na órbita terrestre custa outros US$ 100 mil – o que ainda é uma barganha na indústria.

As coisas começaram a se encaixar de vez quando Lucas encontrou Douglas Galante, hoje cientista-chefe da Garatéa-L e pesquisador do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron da USP, e os dois passaram a trabalhar juntos para criar missões de astrobiologia para os balões. 

Foi um encontro fortuito. Pouco antes, a NASA havia divulgado abertamente uma lista de missões que lhe interessavam – e entre os itens estavam experimentos biológicos no espaço.

Tocando a startup em paralelo com outros compromissos profissionais, Lucas e Douglas delinearam uma missão que envolvesse cubesats e astrobiologia, campo que estuda o surgimento e evolução da vida no universo.

Veja nossa entrevista com o astronauta-chefe da NASA: ‘Ao fazer o que te interessa, você naturalmente faz bem’

O resultado foi a Garatéa-L, que pretende levar experimentos biológicos para investigar como certos organismos sobrevivem a viagens espaciais longas quando expostos à radiação cósmica.

Embora bastante avançado no papel, o projeto ainda não tinha como sair do planeta. Em agosto de 2016, no entanto, Lucas recebeu uma ligação inesperada do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe).

“Um pesquisador me falou sobre uma missão europeia que estava em busca de parceiros internacionais”, lembra Lucas. “O Inpe queria participar do edital, mas não tinha alguém que juntasse exploração de espaço profundo e cubesats. Queriam saber se eu gostaria de liderar a equipe. Pensei por quatro minutos e falei que estava dentro.”

Quando a Garatéa – que tem USP, Inpe, Universidade Federal de Santa Catarina, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Instituto Tecnológico de Aeronáutica, Instituto Mauá de Tecnologia e a Universities Space Research Association entre os parceiros – garantiu um dos lugares na nave, Lucas fez as malas no interior e se mudou para São Paulo.

Os experimentos

“Estamos todos empolgadíssimos e correndo contra o relógio para resolver todos os problemas científicos, tecnológicos, logísticos e financeiros que uma missão como essa representa”, diz Douglas.

Os cubesats levarão, além de uma câmera, colônias de bactérias extremófilas – aquelas que conseguem viver nos ambientes mais inóspitos da Terra, como desertos, vulcões e no fundo do oceano – e culturas de tecidos humanos. Ambas serão usadas para pesquisar os efeitos de exposição prolongada à radiação cósmica.

A Lua é um local vantajoso para testes do tipo porque, dependendo da fase, está protegida por uma fração do campo eletromagnético terrestre. Ou seja, é possível observar os efeitos em dois momentos: com e sem essa proteção parcial.

“A ideia é deixar as bactérias se dando mal quando estiverem fora do campo e, quando estiverem dentro dele, observar se a vida sofreu muitos danos e se poderia voltar a crescer”, diz Lucas. “Queremos entender se os danos que sofrem a longo prazo são reversíveis ou não, o que é importante para entender o passado e o futuro da vida.”

E por que esse tipo de experimento em particular importa? Para a equipe da Garatéa, a educação e a curiosidade – seja entre crianças ou entre pós-graduandos em laboratórios universitários – são fatores primordiais.

A equipe do grupo Zenith
[Parte da equipe do grupo de estudos Zenith / Divulgação]

Logo depois, vem os aspectos científicos. É possível investigar se a vida como a conhecemos é capaz de existir fora do ambiente protegido da Terra, por exemplo, e angariar dados importantes para as missões interplanetárias que já estão no horizonte.

A NASA planeja uma expedição tripulada para Marte na década de 2030, enquanto Elon Musk, um dos pioneiros de startups new space e fundador da SpaceX, pensa em enviar uma equipe já em 2024. Estima-se atualmente que cada trecho da viagem leve cerca de seis meses – e astronautas vão precisar sobreviver antes, durante e depois do pouso.

“Como posso levar DNA sem que seja danificado? Como levar sementes até Marte e fazer com que consigam suportar aquele ambiente agressivo para crescer?”, indaga Lucas, elucidando algumas das dúvidas envolvidas.

Outra aplicação do experimento tem um impacto terrestre mais palpável. “O conhecimento pode ser usado para desenvolver novos fármacos e novos equipamentos de imageamento médico”, exemplifica Douglas.

Com a reserva na nave-mãe confirmada e o orçamento em mãos, a Garatéa ganhou algo novo: uma conta de R$ 35 milhões, que vence no segundo semestre de 2018, para pagar.

Modelo de negócios pioneiro

“O primeiro desafio que o Brasil enfrenta é ter um plano nacional de atividades espaciais”, resume Ricardo Galvão, diretor do Inpe. “O que o Brasil quer ser a longo prazo? Um país capaz de lançar satélites ao redor da Terra ou capaz de missões para Marte? Ninguém se torna uma potência sem dizer o que quer.”

E para ter uma indústria nacional fortalecida, continua ele, é absolutamente vital que se tenha uma base sólida de encomendas do governo.

Embora o assunto seja polêmico – “Não podemos ficar dependendo de outros países e do Google quando se trata de satélites de comunicação e monitoramento de fronteiras, é algo de enorme importância”, afirma Galvão –, este é um gasto não prioritário no país.

É algo que o orçamento brasileiro deixa claro. Em 2016, a NASA recebeu cerca de US$ 19 bilhões e a ESA, € 5,2 bilhões. Índia e China investiram US$ 1,2 bilhão e US$ 2 bilhões, respectivamente, em suas agências espaciais. A Agência Espacial Brasileira recebeu pouco mais de R$ 19 milhões.

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Dentro desse quadro pouco otimista, a Garatéa – que espera que o governo custeie pelo menos um terço de sua missão lunar – criou um modelo de negócios que visa conquistar a iniciativa privada.

Cerca de R$ 28 milhões dos R$ 35 milhões necessários vão para custear o voo, que tem um preço fixo em libras esterlinas. O restante será usado para montar o satélite em si.

“O que não falta é desafio”, diz Pedro Terra, responsável pela relação com investidores.

Com experiência como empreendedor em uma aceleradora no Vale do Silício, um diploma da inovadora Universidade Singularity e apaixonado pelo espaço, ele se uniu à equipe pouco após a chamada do Inpe e se dedica a captar fundos com Lucas. 

“Nos Estados Unidos, tínhamos visitas de três investidores por dia e até atrapalhava o trabalho. Aqui não temos a mesma cultura nem investidores tão arrojados, então a estratégia é diferente”, fala.

Uma coisa que une investidores do mundo inteiro, porém, é a necessidade de mostrar o que eles ganham investindo.

No caso da Garatéa, foram criadas várias frentes, como vendas de cotas publicitárias, direitos de imagem e licenciamento do nome da missão e da tecnologia envolvida.

“Para ir à Lua, preciso criar uma tecnologia que ainda não existe no Brasil, de proteção para uma sonda não queimar com a radiação a parafusos”, exemplifica Lucas. “Então se você quiser falar que seu produto está certificado para ir à Lua, fazemos um leilão e escolhemos quem contribuir melhor.”

A ideia é viabilizar um modelo de negócios mais ágil e flexível, que não dependa tanto de verba governamental e que possa ser emulado por outros empreendedores, dentro e fora do Brasil.

Cubesats no espaço
[Cubesats nos arredores da Estação Espacial Internacional / Divulgação]

Sidney Nakahodo, professor brasileiro da Universidade Columbia, criou sua própria aceleradora para startups desse tipo em Nova York, a NewSpace NYC. Conselheiro da Garatéa, ele afirma que esse tipo de projeto é importante para o país em diversos níveis.

“Primeiro, a missão ajuda a desmistificar a ideia de que projetos espaciais de ponta só podem ser conduzidos por economias desenvolvidas”, fala. “Segundo, a participação privada no financiamento de um projeto científico espacial seria um ‘case’ inédito a nível global. Por último, o projeto servirá de inspiração para que toda uma geração de jovens brasileiros busque aprofundar seus conhecimentos e perseguir carreiras relacionadas à ciência, tecnologia, engenharia e matemática, entre outras áreas.”

“Sem falta modéstia, estamos na vanguarda aqui”, resume Lucas.

Para Ricardo Galvão, o modelo tem potencial – até certo ponto. “A missão Garatéa, com o tamanho que tem, consegue se apoiar. Mas qualquer coisa maior a nível espacial vai exigir verbas bem mais amplas.”

“Sempre irá faltar verba, isso é um fato”, diz Douglas. “Mas os governos precisam enxergar as vantagens e a necessidade estratégica do investimento em ciência espacial e o potencial imenso de benefícios científicos, tecnológicos e educacionais que ele pode trazer para toda a população.”

A importância da exploração

Tais benefícios vão muito além do que se espera.

Fazendas verticais, por exemplo, uma grande aposta da agricultura que permite o cultivo de plantas dentro de prédios, derivam parcialmente de tecnologia desenvolvida para plantar alimentos na Lua.

E um em cada três celulares no mundo utiliza um sensor de imagem desenvolvido primordialmente para deixar menores câmeras digitais enviadas ao espaço. Retratos de galáxias distantes e selfies, portanto, têm um inesperado elemento em comum.

Células solares flexíveis, aspiradores de pó sem fio e até sistemas para introduzir gás carbônico em cervejas são outros exemplos de tecnologias derivadas – isso sem falar nos avanços de software e hardware fundamentais no cotidiano moderno.

O aspecto comercial, no entanto, é apenas um dos motivos empregados por defensores da exploração espacial.

“A atividade que pode ser gerada no espaço não é só financeira, é de sobrevivência da humanidade”, diz Lucas.

“O Waze funciona porque há satélites voando, o sistema bancário mundial é seguro porque o tempo é mercado por satélite”, empolga-se. “E uma colônia de bactérias na Lua pode resultar no entendimento de como o DNA consegue sobreviver em ambientes agressivos e, posteriormente, para transformar um deserto em um lugar de cultivo. É algo que me motiva muito.”

O estudante Francesco Lena está ainda mais otimista. “Na busca pelo desconhecido, desenvolvemos ferramentas fantásticas que continuam a mudar nossa forma de viver e ver o mundo”, fala. “E o mais intrigante é que a primeira geração de exploradores espaciais está, em boa parte, viva. Podemos esperar feitos inimagináveis para os próximos anos.”

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