Se o burnout há tempos figura como uma questão frequente para os profissionais, agora, em tempos da crise derivada da disseminação do novo coronavírus, pode ser ainda mais uma constante na rotina de isolamento. “O burnout é um desgaste muito grande que se manifesta com sintomas ansiosos e depressivos. Geralmente o paciente está exaurido com o excesso de atividades e cobranças e pouca proteção emocional”, explicou ao Na Prática no começo deste ano Fábio Leite, que é membro titular da Sociedade Brasileira de Psiquiatria.
Pensando nas consequências de tamanha mudança no esquema de trabalho somada à perpetuação do culto moderno à produtividade e à dedicação extrema à profissão, o site Bloomberg entrevistou a antropóloga digital Rahaf Harfoush. Ela é autora do livro “Hustle & Float: Reclaim Your Creativity and Thrive in a World Obsessed With Work” e se dedica a investigar a epidemia da Síndrome de Burnout. Para a especialista, deve prevalecer uma máxima simples: precisamos trabalhar menos.
Confira sua análise do contexto atual – e recomendações – na nossa tradução da entrevista na íntegra, abaixo. A original, em inglês, você confere no Bloomberg.
Crise e burnout: as dicas deste antropólogo digital para lidar melhor com o trabalho no contexto atual
No seu livro, você investiga a origem do burnout de trabalho. O que está em jogo?
Desde a Revolução Industrial, a filosofia dominante do trabalho está centrada na produtividade como a única métrica importante para o sucesso. À medida que a cultura do trabalho se desenvolveu, internalizamos a ideia de que qualquer tempo que não é gasto fazendo algo é perda de tempo. Pior, fomos levados a acreditar que, se não estamos lutando e nos apressando, não merecemos sucesso. E agora, nosso relacionamento com o trabalho ficou vinculado ao nosso senso de nós mesmos e de autoestima. Mas essa ideologia contraria a pesquisa científica que afirma que, para que os profissionais “intelectuais” façam seu melhor trabalho, precisam de espaço e tempo não estruturado.
Como nossa atual crise de saúde complica essa dinâmica?
A estrutura sobre a qual construímos nossas expectativas em relação ao trabalho vem nos prejudicando há muito tempo. Quando você combina nossa cultura de excesso de trabalho crônico com a distração inerente à tecnologia e à mídia social, no momento em que as pessoas são forçadas a ficar em casa, você tem uma receita para a ansiedade e para a culpa ampliadas. Isso coloca as pessoas em um caminho rápido para o burnout.
Como trabalhar menos pode quebrar esse ciclo?
Temos que construir um sistema de trabalho que reflita como nosso cérebro realmente funciona e o que a nossa criatividade precisa. Isso começa com a incorporação da recuperação nesse processo de trabalho. Você não consegue ser inovador se não for criativo e não consegue ser criativo se estiver estressado, exausto, distraído ou privado de sono.
Descansar não significa desviar de seus objetivos, mas tornar possível alcançá-los. Não estou dizendo para não se apressar. Estou dizendo que, seja em uma pandemia ou não, é crucial se recuperar muito quando você trabalha muito.
Qual é o perigo específico da falta de descanso durante esse período de trabalho remoto?
Este não é um período normal, portanto não deve ser tratado como um período normal de trabalho em casa. As linhas entre casa e trabalho, pessoal e profissional, estão borradas e tem uma pressão adicional para sermos produtivos, uma vez que o pensamento é que todos de repente temos mais tempo disponível. Não é esse o caso e, além disso, trabalhar sem parar simplesmente não funciona.
Transformamos a ocupação em um mecanismo de enfrentamento. Agora, as pessoas estão aplicando isso ao seu tempo pessoal enquanto se isolam em casa, preenchendo-o com chamadas de zoom consecutivas, cozinha, exercícios e mais atividades.
É importante usar parte desse tempo para processar nossas emoções e refletir sobre o desconforto de toda essa propaganda de produtividade. Operar como de costume não apenas afetará negativamente seu trabalho, mas também poderá comprometer sua saúde.
Então, como evitamos operar como de costume? E como fazemos nossos chefes concordarem?
Existem passos que todos podemos tomar. Por exemplo, tire 30 minutos para almoçar sem estímulo: sem e-mail, sem Slack, sem distração. Você pode começar com 15 minutos! Depende de nós separarmos períodos de tempo para dar às nossas capacidades cognitivas a chance de relaxar. Depois, considere em levar para a gerência: os trabalhadores podem ser explícitos ao pedir expectativas de seus gerentes. Mude de regras tácitas para diretrizes escritas para que todos entendam como navegar nesse período de trabalho em casa.
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Essa revisão da cultura de trabalho não acontecerá da noite para o dia. O que você recomenda para aqueles que estão sentindo burnout agora?
Comece prestando atenção ao desconforto. Se você estiver se sentindo inquieto, ansioso ou culpado, sente-se e comece a cavar fundo para entender o que está por trás disso.
Temos que nos dar tempo para mudar de uma abordagem mais-melhor para internalizar a ideia de que a recuperação é tão valiosa quanto o trabalho. Ninguém pode fazer isso por nós.
Coloque o tempo de recuperação no seu calendário e cumpra-o. Se não, obrigue-se a escrever por que não. O verdadeiro exercício de superar a devoção ao trabalho e o esgotamento é entender por que não estamos nos dando esse tempo. Não é devido à falta de conhecimento.
Eu também sugeriria cronometrar suas tarefas para entender quanto tempo você realmente precisa para realizá-las. Isso permitirá que você faça listas de tarefas realistas e que evite sentir-se sobrecarregado. Lembre-se: somos constrangidos pelo tempo e, no entanto, superestimamos nossas auto-expectativas constantemente. Isso é algo que pode ser corrigido.
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