Ana Paula Martinez é um nome de destaque do Direito na área de concorrência, nacional e internacionalmente. Em 2016, foi eleita “melhor advogado do mundo” no setor, entre aqueles com menos de 40 anos de idade, no prêmio promovido pela publicação britânica especializada Global Competition Review (GCR).

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Foi a segunda vez que a jurista, natural de Vitória, no Espírito Santo, e naturalizada espanhola em função da descendência paterna, venceu essa categoria. A competição ocorreu em Washington, nos EUA, com direito a cerimônia de smoking, numa espécie de “Oscar da concorrência”.

Pela larga experiência acumulada na carreira em Direito – incluindo a atuação na Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, entre 2007 e 2010 – é frequentemente chamada a prestar consultorias a organizações internacionais, como o Banco Mundial e as Nações Unidas, em sua divisão para o comércio e desenvolvimento, a Unctad.

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A trajetória de Ana Paula Martinez

A entrada de Ana Paula Martinez na seara das práticas econômicas anticompetitivas, lidando com cartéis, processos de licitação pública, fusões e aquisições de empresas, começou em 2002, no quarto ano da Faculdade de Direito na Universidade de São Paulo (USP), uma das mais tradicionais do país.

Lá, um professor lhe recomendou um estágio no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). O órgão federal é responsável por analisar condutas prejudiciais à livre concorrência.

A partir da experiência de um mês em Brasília, onde visitou pela primeira vez o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), começou a gostar do trabalho feito na interseção entre Direito e Economia. Isso acendeu seu interesse em atuar, um dia, num cargo público suficientemente relevante para ter uma ação transformadora.

Vida acadêmica

Daí em diante, sua carreira se encaminhou para a especialidade do Direito concorrencial. Fez mestrado na USP, estudando concorrência internacional e, em seguida, um segundo mestrado em Harvard, em 2005.

Na universidade americana, além de fortalecer seu currículo, tomou intimidade com o sistema jurídico americano, que até então desconhecia. Além disso, fez contatos ainda hoje muito importantes. “Três dos meus padrinhos de casamento vieram de lá – e não é que eu não tivesse amigos antes”, brinca.

Do ponto de vista profissional, Ana Paula tinha colegas de turma que trabalhavam no escritório internacional considerado um dos melhores na área de Direito da Concorrência, o Cleary Gottlieb Steen & Hamilton.

Pós-graduada, tirou a licença da “OAB americana” (na verdade, a “OAB de Nova York”, já que o sistema americano funciona por estado). Também pleiteou uma vaga no Cleary, indo atuar na unidade do escritório em Bruxelas, na Bélgica.

Ana Paula Martinez
Ana Paula Martinez recebe prêmio / Divulgação

 

Oito meses depois, feliz com seu trabalho e sem data para voltar ao Brasil, recebeu uma ligação da Secretária Adjunta do Ministério da Justiça, Mariana Tavares de Araujo. Tratava-se de um convite para um café em Paris, onde estaria para uma reunião da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Atendendo ao convite, tomou um trem e, uma hora e quinze depois, estava sendo sondada para assumir a diretoria do Departamento de Proteção e Defesa Econômica do ministério. Lá, seria responsável por investigar condutas anticompetitivas no Brasil e por dar pareceres sobre fusões e aquisições de empresas no país, posteriormente julgadas pelo Cade.

Quando o convite se concretizou, duas semanas depois, a advogada aceitou sem pensar duas vezes. “Por mais que eu quisesse continuar alguns anos ainda em Bruxelas, convite de governo você não controla quando bate à sua porta”, pondera.

Ana Paula Martinez e a política anticartéis

Uma de suas principais realizações no Ministério da Justiça foi participar da criação da Estratégia Nacional de Combate a Cartéis. A iniciativa estruturou a cooperação entre os diferentes atores envolvidos no combate a esse tipo de crime para tornar as punições mais efetivas.

“Na época, não existia um bom diálogo entre o Cade, que julgava as práticas de cartel do ponto de vista administrativo, e os órgãos responsáveis pela perseguição criminal aos formadores de cartel: a Polícia Federal, a Polícia Civil e o Ministério Público. O resultado era que quase ninguém ia para a cadeia no Brasil por esse tipo de crime.”

Como forma de entrar nessa cooperação, o Departamento dirigido por Ana Paula passou, então, a disponibilizar parte de seu orçamento para que autoridades criminais criassem unidades específicas de repressão a cartéis, reforçando seu capital humano e criando laboratórios de perícia destinados especialmente a essa finalidade. A partir do incentivo, oito novos grupos foram criados pela polícia e pelo Ministério Pública, à época.

Abaixo, assista à uma palestra de Ana Paula Martinez com o ministro Gilson Dipp sobre delação premiada e acordos de leniência:

Desde a implementação da estratégia nacional, mais de 50 executivos brasileiros de diversos setores já foram condenados penalmente por prática de cartel. É algo que, anteriormente, só acontecia no setor de postos de gasolina e nos processos de licitação pública. Coibia-se prática de cartéis no conjunto da repressão a outros tipos de crime, como corrupção e lavagem de dinheiro.

A repressão ampliada para outras áreas e feita de forma mais severa, com risco real de prisão, tornou atrativo o programa brasileiro de leniência, como é chamado o primo da delação premiada. Em vez de conceder atenuantes de penalidades a pessoas físicas, em troca de denúncias úteis a investigações do governo, o faz para empresas. A partir de então, se tornou um dos importantes motores do trabalho do Cade.

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Medida excepcional

Ana Paula se interessou tanto pela abordagem adotada no Ministério da Justiça que escolheu o assunto para seu doutorado, em que estudou a coação a cartéis na interface do direito administrativo e penal.

“A repressão a cartéis só funciona se o sujeito acha que vai ser pego e que a sanção vai ser severa. Por isso é importante a punição penal. Aplicar multas multimilionárias, somente, acaba impondo sanções a pessoas que não tiveram nada a ver com aquela prática – para pagar a multa, a empresa demite funcionários, não paga fornecedores, deixa clientes na mão. Por isso, tem que haver um equilíbrio entre punição administrativa e penal”, analisa.

Ainda no governo, Ana Paula Martinez e sua equipe coibiram a tentativa de uma empreiteira obter vantagens no processo de concorrência pela concessão da usina hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira. O modelo da licitação previa que a concorrência seria vencida pela empresa que oferecesse ao governo o preço mais baixo da energia, obedecendo a um teto pré-estabelecido de R$ 122 por megawatt-hora (MWh).

Como o mercado vê quem tem um LLM no currículo:

Mas, antes do leilão, um dos concorrentes fez acordos de exclusividade com fornecedores de turbinas e geradores. Como esses componentes respondem por cerca de 30% dos custos de uma usina, a estratégia garantia que somente esta empresa teria preços competitivos na licitação.

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Os concorrentes, além de ter de importar turbinas e geradores, ficariam sem acesso a linhas de financiamento do BNDES, que tinha regras específicas envolvendo apenas produtos fabricados em território nacional.

Diante dessa situação, a equipe de Ana Paula Martinez pleiteou uma medida excepcional no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para suspender a relação de exclusividade com os fornecedores. O parecer do STJ, favorável à suspensão, forçou um acordo da empreiteira com o Cade. E aumentou o nível de competitividade da licitação, baixando o preço final muito além do esperado.

O lance vencedor do leilão, de R$78,87 por MWh, foi 35,4% mais baixo em relação ao preço teto de R$ 122 por MWh, representando uma economia de até R$ 16,4 bilhões nos 30 anos da concessão.

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Efeitos do trabalho

“Foi um caso super importante para mostrar o que uma boa pressão competitiva pode render em termos de economia para o governo e para a população”, analisa. A agilidade da ação foi crucial para o resultado.

“Eu brinco que existe processo de papel e processo de carne e osso. No processo de papel, você identifica o problema, instaura o processo, envia um monte de ofício e leva de sete a dez anos analisando a questão. Esse processo foi de carne e osso porque teve ritmo e, com uma combinação de medidas administrativas e judiciais, permitiu eliminar a restrição de concorrência antes do leilão.”

“Se o leilão tivesse acontecido, eu posso garantir que até hoje a gente estaria discutindo o caso no Cade. No fim do dia, o Cade ia impor uma multa multimilionária, que levaria a mais 15 anos de briga no Judiciário. E com muito pouco efeito prático para o Estado e a população.”

Usina hidrelétrica de Santo Antônio
Usina hidrelétrica de Santo Antônio / Reprodução

 

Contribuiu também para o resultado efetivo o fato de a construção da usina ter um caráter prioritário para o governo federal naquele momento. Ela fazia parte das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que buscava garantir o fornecimento de energia, sem reviver o histórico de apagões. Em função desse caráter prioritário, as licitações estavam sendo acompanhadas de perto pela imprensa.

Além disso, a circunstância específica do caso – no qual foi possível configurar um dano iminente ao interesse público – tornou cabível entrar com uma medida excepcional numa instância superior da Justiça e obter rapidamente um parecer favorável.

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Ana Paula em cooperação internacional

A experiência que Ana Paula Martinez acumulou nos Estados Unidos e na Europa contribuiu para que ela pudesse atuar em uma operação anticartéis, envolvendo o Brasil e outros quatro países. A ação juntou as justiças brasileira e americana e a Comissão Europeia (órgão executivo da União Europeia, com sede em em Bruxelas).

Conhecer o sistema jurídico americano ajudou bastante porque Brasil e Estados Unidos têm tradições do direito muito diversas. Então foi importante saber em que caixinhas eles colocam os problemas para não ficar um ‘papo de maluco’.” Em Bruxelas, além de conhecer soube lidar com as autoridades, porque além de conhecer as regras, tinha contatos lá.

Esse tipo de cooperação só funciona se você tem a intimidade de pegar o telefone e ligar, porque, se mandar ofício para tudo, nunca vai acontecer. E essas relações você constrói ao longo de anos.”

O conhecimento sobre como funciona o sistema de concorrência em diversos países também faz com que a advogada seja frequentemente convidada a assessorar autoridades de outras nacionalidades e organismos internacionais.

Depois que deixou o Ministério da Justiça brasileiro, a especialista passou dois anos compartilhando sua expertise sobre cartéis com o governo da Colômbia, por exemplo. O convite foi feito por intermédio de um ex-colega de Harvard, que assumira a chefia da autoridade daquele país na área de concorrência.

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“Passava duas semanas por mês na Colômbia conhecendo a dinâmica da autoridade local e emitindo relatórios sobre o que eu achava que podia ser aprimorado”, lembra.

Já a pedido da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), avaliou o sistema de concorrência em Moçambique e opinou sobre a necessidade da criação de uma lei que regulasse o tema, indicando que modelo seria mais adequado à realidade do país.

“Adoro fazer essas consultorias. Me sinto útil ao compartilhar minha experiência na área pública em benefício de outros países.”

O saldo do governo

Dos quatro anos em que trabalhou no governo brasileiro, Ana Paula Martinez faz um balanço positivo. Trabalhava com uma equipe pequena, mas jovem, preparada e bem remunerada, com orçamento suficiente e autonomia. “A gente se via meio como ‘os 300 de Esparta’ – poucos, mas muito empenhados”, afirma.

“O orçamento era bom – nem tão grande quando comparado com de outros ministérios, mas com boas ideias a gente estabelecia mecanismos de cooperação e usava outros braços, no Ministério Público ou na Polícia Federal. E, apesar de lidar com casos muito sensíveis, que afetavam muitos interesses, não houve interferência política.”

Vale a pena pausar a carreira para cursar um LLM fora do país?

Afeita ao trabalho sob pressão – coisa de quem aprendeu cedo a lidar com um volume grande de demandas sem se desesperar, por ter sido educada pelo pai no sistema espanhol, incluindo estudos em latim e provas no Consulado Geral da Espanha três vezes ao ano, ao mesmo tempo em que cursava o sistema de ensino brasileiro –, fazia o que fosse necessário para não ter o trabalho atrasado pelo trâmite burocrático, ainda que o necessário fosse fazer as vezes de assistente e ir pessoalmente entregar documentos.

A parte desafiadora de trabalhar no governo, ela diz, foi interagir com o Congresso para costurar a aprovação da Nova Lei da Defesa da Concorrência, que instituiu no Brasil a obrigação da análise prévia dos atos de concentração econômica, já adotada na maior parte das legislações antitruste do mundo. “A lógica de trabalho do Congresso é outra”, diz. O projeto acabou sendo aprovado em 2011, quando a jurista já havia deixando o cargo no Ministério da Justiça.

Porta giratória

Hoje Ana Paula Martinez atua no setor privado. É sócia do escritório Levy & Salomão Advogados, em São Paulo, um dos mais conceituados do país na área do direito empresarial. Representa clientes em investigações por práticas anticoncorrenciais nos mais diversos setores da economia. Ainda presta consultoria preventiva em matéria de compliance concorrencial e revisão de práticas comerciais. Além disso, assessora grupos econômicos com relação a fusões e aquisições de alta complexidade.

Em um dos casos mais publicizados em que atuou no escritório, assessorou a empreiteira Camargo Corrêa, investigada na Operação Lava Jato, a firmar acordo de leniência com autoridades do Cade e do Ministério Público Federal.

Para seu futuro, imagina-se transitando entre as esferas privada e pública. “Gosto da ideia da porta giratória: ao longo da vida você circula entre governo e setor privado umas três ou quatro vezes. Acho saudável. Você se põe no lugar do outro, entende melhor os problemas, aprimora seu trabalho”, conclui.

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